A Dama de Negro

A Dama de Negro




Já faz três meses que percorro o reino com apenas meus poucos mantimentos, minha força e minha audácia. A necessidade e o desejo de justiça me alimentam e me fazem prosseguir nesse penoso trajeto pelo qual rumou a minha vida, minha sede de vingança me encoraja, ao mesmo tempo que se transforma em um fardo que tenho que levar em minhas costas, ao pensar naqueles que em minha memória, clamam pela justiça.
            Está no meio do inverno o que decerto me atrapalha. A neve macia faz meus pés afundarem tornando a viagem cansativa, eu paro para tomar folego e olho ao meu redor, vejo a beleza cristalina dos delicados flocos de neve que se amontoam em minha capa feita de pele, dando um certo contraste entre o perfeito e puro branco da neve e a minha simples capa marrom surrada. Uma tênue brisa vinda do Norte corta a floresta sem vida e cheia de galhos secos, negros e retorcidos das árvores, agora hibernantes; o vento chega em meu rosto, gelado, penetrante, como uma lâmina de dois gumes que arranha minha face e penetra em meus ossos. De súbito eu olho para os céus: pesadas nuvens de tom cinza-escuro se aproximam trazendo uma nevasca. “Eu devo me proteger!” penso eu, sei que mais adiante existe uma cidadela, logo após um pequeno bosque de pinheiros e outras sempre-vivas, que por desejo dos deuses permanecem verdes mesmo após o Sol ter se afastado. “Se eu for bem rápido talvez consiga chegar a cidade antes que a nevasca me alcance”. Após esse pensamento, retorno meu passo e sigo em direção ao bosque, até que chego na cidade.
O vento fica mais forte, eu avisto uma taverna e entro nela para me refugiar da tempestade.
Lá dentro avisto vários homens sentados em mesas de carvalho, bebendo, comendo e falando de suas vidas. O clima dentro da taverna era bem mais quente do que o do lado de fora, graças a uma bela fogueira no centro do salão e outra em uma lareira que ficava em uma das paredes feita com pedras de cor cinza, a luz do fogo tremulava e estalava, projetando sombras que se mexiam fantasmagoricamente na parede.
— Por favor senhor! — Disse eu para o homem atrás do balcão — Me traga um corno com cerveja escura, pão, queijo e bacon tostado.
— Sentei sozinho em uma mesa e em alguns minutos depois chegou meu pedido, a cerveja espumava em meu copo, dei uma mordida no pão e depois no bacon levemente tostado, crocante e perfeitamente salgado, enfim tomei um gole da cerveja para ajudar a descer. Quando estava para terminar a comida o garçom chega com outro copo.
— O que é isto? Seja o que for eu não pedi!
— Pediram para o senhor, também já o pagaram, é hidromel.
— Quem o pagou?
— Aquela senhora com o capuz — Disse o garçom apontando para uma mulher que estava a sair da taverna, antes de sair pela porta ela olhou para trás rapidamente, direto para mim por cima dos ombros e saiu misteriosamente. Pude ver seu rosto, e apesar do momento ser breve a imagem ficou bem fixa em minha mente, tinha uma pele clara, branca como a luz, um rosto delicado com curvas sutis contornadas pela luz do fogo, seu cabelo era ruivo como a chama da lareira, como a mais bela e pura peça de cobre, polida e refinada pelo fogo, uma cor viva e vibrante que se destacava na sua capa negra como a noite sem o luar, seus olhos, duas peças de ouro revestidas de esmeralda, na verdade, não tinha uma pedra preciosa que se igualasse a seus olhos que variavam do mel ao verde, penetrantes, uma visão arrebatadora. Estonteado com tal visão, peguei o meu copo e tomei o hidromel, a bebida dos deuses, aquela que é servida pelo próprio Odin quando janta em seu salão em Asgard com suas filhas, as Valquírias, “Talvez tenha sido uma delas que avistei!”, a bebida doce encantou meu paladar, e desceu pela garganta...
Continuo bebendo o hidromel enquanto olho vagamente pela porta, tentando decifrar aquela dama, “por que ela me pagou essa bebida? Não a conheço, não havia motivo para essa ação.” Minha mente fervilhava com esta dúvida. De súbito me levantei, poderia perguntar diretamente a ela se a alcançasse, deixei algumas moedas de prata na mesa pela comida e sai pela porta. A nevasca já havia diminuído, segui pelas brancas ruas da cidade olhando para todos os lados, não havia sinal daquela misteriosa dama, “Será que era mesmo uma Valquíria?” continuei andando, quando virei em uma esquina, de repente vi ela, andando calmamente. Aproximei-me dela e a toquei no ombro, ela rapidamente virou-se e me encarou.
—Ah! És tu...
— Sabes quem sou?
— Não
— Por que me pagastes então uma bebida?
—Simpatizei com vossa pessoa, percebi em teu olhar amargura e sofrimento, imaginei que um pouco de hidromel o fosse alegrar. — Disse ela. Seu lindo cabelo ruivo balançava ao suave toque do vento. Fiquei desconcertado e calei-me fitando em seus olhos, sem saber o que responder. — Ficastes calado, te ofendi?
— Não, não ofendeu... Bem... Obrigado por sua generosidade — Eu disse com uma expressão séria em meu rosto, virei-me para partir, ainda estava perplexo.
— E então? Por que sofres senhor? Gostaria de saber tua história se não for um incomodo.
— Não, não me importo — Não queria ser rude com ela, também me simpatizava com ela. — Minha história é triste milady, não tem muito o que contar, o fato é que um dia eu saí para caçar, e quando voltei para casa, vi minha família morta e minha fazenda queimava, consegui ver o homem que fez isso cavalgando ao longe, já não dava para alcança-lo, mas fui ao seu encalço e descobri quem ele era, estou atrás dele, é simplesmente isso. — Falei, sentindo meu coração mais pesado enquanto relembrava, era agora só escuridão em meu coração, como se a destruição estivesse ao meu redor.
— E qual é o nome de vosso alvo?
— Bjorn, vive na outra província, estou indo mata-lo. — Disse com ódio.
— Sua história é realmente triste, mas não vejo como a morte desse sujeito pode ajudá-lo.
— Jurei vingança! Honrarei o sangue de minha família e não deixarei esse homem perverso sair impune.
— Vingança? — Ela suspirou — Vejo apenas o ódio transformando os homens em animais, apenas mais derramamento de sangue.
— Achas que esse homem merece misericórdia? Esse desalmado matou minha família, achas que ela não significa nada? — Disse enfurecendo-me.
— Acho que a morte dele não trará vossa família de volta, e acho que eles não iriam querem ver você no estado que está, sedento por vingança, sem amor no coração, sem um pingo de compaixão. Essas guerras são impossíveis de terem fim. — Disse ela serenamente.
— Tu não entendes. Não importa, vingar-me-ei deste assassino.
— Sei que vais! Continuarás a perseguir seu inimigo. Mas por favor, escute meu conselho, não te apresses em desperdiçar tua vida, tenha fé e acredite em mim, não caia em um erro tão ingênuo. Se um dia precisar de mim, não estarei longe, sabes onde me achar. — Após suas palavras ela deu-me as costas e seguiu seu caminho, não consegui dizer mais nada, e apenas a vi se distanciando de mim, seu vestido balançava com o seu andar, fiquei a observando até que suas vestes negras desapareceram no meio da névoa que nos cercava. Aquela conversa me deixou atônito, algo se despertava em minha mente e em meu coração, como uma fraca luz em meio a escuridão, uma leve luz tremulante que eu não conseguia distinguir bem. Vim atrás de esclarecimentos, mas minha mente só ficava mais confusa.
Decidi, enfim, prosseguir meu caminho, com os restos de moeda que me dispunha comprei um cavalo e segui pela estrada, agora a tempestade passara. A estrada era sinuosa, cercada de árvores que subiam altas e depois se curvavam sobre o caminho formando uma espécie de cúpula. Na mata haviam pinheiros, castanheiras, cedros e bordos com suas copas pintadas de branco e com estalactites pendendo de seus galhos. No chão, folhas escarlates e douradas de bordo e algumas agulhas de pinheiro jogadas, aqui a neve era mais rasa, mais fácil de cavalgar, eu segui estrada a frente.
Enquanto cavalgava a meio-trote sob o silêncio da natureza, pensava no que aquela dama me disse, aquela dama de negro, todas suas palavras e a paz com que falava.
Os dias foram passando e meu coração parecia se renovar, conforme aquelas palavras penetravam em minha mente, aquela centelha de luz parecia aumentar e agora parecia que essa luz podia derrotar as trevas em meu íntimo, uma nova esperança, aquela vingança perdia o sentido, ela estava certa, a morte dele não iria trazer minha família de volta, e os deuses não seriam tão injustos de deixa-lo impune a isso. Forseti traria justiça desde seus salões e puniria meu inimigo. Quanto a mim, não posso desperdiçar minha vida nessa empreitada, a vida desse homem não valia meu sacrifício e minha vida, ele não merece nem o pão que come.
Puxei as rédeas de meu cavalo e dei meia volta, tornei a galopar em direção a cidade que deixei para trás, onde está aquela dama que tão sabiamente me aconselhara, recordo daquele dia e me sinto mais revigorado e mais leve, sem o peso do ódio, sem o grosso manto de trevas que eu carregava. Não sei o que farei daqui em diante, mas sei que ela é o caminho. Quando eu consigo chegar à cidade desço do cavalo e saio em busca dela, uma nova busca, mas agora de paz e bondade.



Jonathan Campos




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